Dissociação e Religiosidade
- 28 de set.
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Desde a Antiguidade a mulher é apontada como o centro de poder, o cálice que comporta a vida, o útero gerador da energia. Xamãs, sacerdotisas, pitonisas, vestais, profetizas, nadītu, sibilas, assumiam papéis de relevância dentro das ritualísticas de seus povos, passavam por preparação através de convivência com as que antecederam o cargo, treinamentos, abdicações, iniciações e, em muitos dos casos, passam a vida dedicadas a função sacerdotal e espiritual.
Após o período tenebroso na história do mundo, as mulheres retomaram a incumbência dos cultos através das tradições no século XX, tradições essas que resgataram cultos antigos, deusas e deuses, rituais e procedimentos, adaptando práticas e trazendo a luz o conhecimento que outrora estava perdido; então as mulheres voltam a ter voz, cargos e destaque nesse campo. Tudo acontecia de forma interna, mais velada, o acesso era limitado e restrito, as seleções costumavam envolver etapas.
No final do século passado, com a Nova Era e a Contracultura o esoterismo ganhou força, a partir dos anos 60, com o conhecimento do que era o ocultismo especialmente pelas composições, divulgação de artigos, conhecimento da existência de ordens, além da revogação da Witchcraft Act (Lei da Bruxaria) em 1951, no Reino Unido, assim livros esotéricos passaram a ganhar maior espaço nas livrarias, despertando o interesse popular. Pouco depois o tema ocupou revistas que traziam previsões astrológicas, "simpatias" para diversos fins, algumas com edições especiais colecionáveis que vinham com cartas de tarot.

Quando a internet passa a fazer parte da vida social, comunidades surgem com fóruns, comunidades e discussões saudáveis sobre o tema, foi um brilhante passo da aprendizagem, muitos queriam descobrir mais, entender sonhos, compreender o que eram os sinais, as manifestações. E que soou primeiro como libertação de dogmas cristãos, logo mais se transformou em preocupação, diversas pessoas saíam da curiosidade do entendimento, das tentativas de descobrir e adentrar algum grupo e passaram a querer notoriedade e com isso houve uma explosão de cartomantes que ofereciam seus serviços nos jornais impressos, astrólogos que misturavam suas ideologias com os astros e as feiticeiras que colavam seus cartazes nos postes garantindo que o grande amor voltaria em três dias. A internet também facilitou o acesso a muito conteúdo restrito que agora se tornara pirateado e em grande demanda nas prateleiras de acesso.
Mas como dizem que não é bom questionar se as coisas podem ficar piores, elas ficaram. Veio a pandemia, pessoas em casa, crises conjugais, crises existenciais, pânico e terror da morte assolando todo mundo, e claro que com a pandemia o esgotamento de recursos financeiros, e com a limitação material uma nova explosão ocorreu: do dia para noite milhares e incontáveis pessoas se tornaram curandeiras, bruxas, mestres, sacerdotisas, oraculistas, oferecendo lives com promessa de cura, de saúde, de proteção, harmonização de relacionamentos, glamour e uma série de vendas casadas para aliviar o tédio de quem estava desesperado e a frustração de quem precisou se recolher a insignificância da própria existência.
O que antes era tentativa de manutenção, virou palco para charlatanismo de todos os fins, a essência antiga do que de fato era entrar em contato com a espiritualidade foi substituída por lucratividade e performances. Nesse movimento o fator da dissociação no meio esotérico começou ficar (muito) preocupante, pois práticas inexistentes, condutas deploráveis, e o exemplo tomado como verdade para quem busca um início de jornada invadiram as redes sociais, o que tinha significado por ser oculto foi banalizado e exposto, a necessidade de uma validação de falsa autoridade deixou em evidência as mentiras daqueles que juram conduzir no caminho.
Poderia listar um artigo de tais práticas, mas entre as mais absurdas temos: falta de ética ao expor a privacidade de clientes a outras pessoas, manipular e fingir relatos por perfis fakes, comprar relatos e interações para validar o que fingem ser, iniciações simuladas feitas porcamente com utensílios domésticos (como pano de prato e corda de construção civil) para close sem roupa, comunicação com lâmpadas, confusão de câmera suja e poeira com "espíritos iluminados", manias de perseguição e ataques, graus quais nunca existiram - nem mesmo em ordens, estímulos para sacrifícios de animais inocentes como lagartixas, discursos embasados de ilusões como uma divindade "comer" daemons, dentre tantos outros absurdos que se aproximam a auto depreciação.
"Os dados reais não mudam quando aplicamos a eles outros nomes!" -JUNG, 2002
Esses comportamentos nos leva diretamente ao que Léon Bonaventure afirmou ao dizer que "não é o espiritual que aparece primeiro, mas o psíquico, e depois o espiritual. É a partir do olhar do imo espiritual interior que a alma toma seu sentido", os fenômenos externos devem ser observados antes na relação da psique daquele que os declara, bem sabemos que a falta de saúde e equilíbrio emocional confrontam a realidade quando em contato com a profundidade espiritual e mística.
von Franz, ao tratar da relação entre psicologia e teologia, menciona que o arquétipo do Self, ou seja, o centro divino da psique, pode provocar o sentimento de certeza em relação as ações, ignorando o código coletivo, e ouvindo a "voz" que cria convicções pelas quais o individuo pode se sujeitar até mesmo a morte, como caso de Sócrates, e que esse instinto pode ditar coisas absolutamente chocantes, von Franz cita como exemplo "imaginem Oséias casando-se com uma prostituta a mandato de Deus! Tenho certeza de que se ele tivesse ido a qualquer sacerdote protestante, anglicano, católico ou judeu, eles teriam dito: Meu caro, isto é um engano psicológico, Deus não pode ordenar tal coisa, pois os teólogos acham que sabem o que Deus pode ou não fazer, e por isso essa pessoa deve estar errada, ou é o Demónio ou a própria sombra ou um problema sexual reprimido. Hoje em dia diriam que o que falava dentro de Oséias era o problema do sexo reprimido e da anima, mas jamais Deus!"
A dissociação da realidade, a idealização de manifestar a persona de alguém escolhido por uma divindade, pode transcender não apenas limites sociais e morais, mas os limites de autocuidado, de despersofinicação de si mesmo, de uma descida para o abismo muito grande onde a sombra invade completamente o ego, tirando todo raciocínio e qualquer envergadura para que as manifestações mentais sejam interpretadas e reconhecidas de forma consciente e lúcida. A pessoa pode se perder totalmente de quem ela já foi um dia, negligenciando suas funções básicas, sendo afastada dos totens que dão diretrizes para uma equalização equilibrada na vida moderna; nessa etapa tudo perde o valor, principalmente quando os caminhos construídos sobre solos arenosos começam a ruir gradativamente e é nesse estágio que vemos os casos perigosos que se tornam criminais, não há mais referência do que é verdade e do que é fantasia.
Algumas pessoas pensam que ter visões, audições, alucinações são o ápice da loucura, não é, essas são camadas superficiais de transtornos não tratados que podem ser agravados com uso de entorpecentes ou alucinógenos de poder em rituais de quimiognose.
Jung fala que o processo de individuação é complexo, no entanto, é o processo saudável do desenvolvimento humano e não enfrentá-lo pode acarretar uma série de desprazeres, uma vez que a tendência se inclina a infantilização com o não reconhecimento do que é necessário "Não é com meras palavras, nem com auto ilusões cômodas que se enfrenta o problema, porque as possibilidades destrutivas existem em demasia. O perigo quase inevitável consiste em ficar mergulhado no conflito e, consequentemente, na dissociação neurótica. (...) Quando existe uma tendência, por ligeira que seja, para a dissociação, ou uma fleuma com inclinação para um estado habitual de inconsciência, pode-se preferir as falsas causalidades à verdade" , o cientista também fala que nos sonhos, visões, alucinações patológicas, ideias delirantes estão em destaque os complexos autônomos da psique:
"É nos sonhos, nas visões, nas alucinações patológicas e nas ideias delirantes onde mais claramente se destacam os complexos autônomos da psique. Como o eu não tem consciência destes complexos, os quais, por isto mesmo, lhe são estranhos, eles aparecem primeiramente sob forma projetada. Nos sonhos eles são representados por outras pessoas; nas visões são projetados, por assim dizer, no espaço, precisamente como as vozes nas perturbações mentais, se é que os doentes não as atribuem diretamente às pessoas que estão à sua volta. As ideias de perseguição, como sabemos, estão ligadas frequentemente a determinadas pessoas em que o paciente projeta as qualidades de seu próprio complexo inconsciente. Ele considera estas pessoas como inimigas, porque seu eu é hostil ao complexo inconsciente, mais ou menos como fazia Saulo em relação ao complexo de Cristo que ele desconhecia. Ele perseguia os cristãos como representantes deste complexo de que ele não se dava conta. Vemos este fenômeno repetir-se constantemente em nossa vida quotidiana: encontramos indivíduos que não hesitam o mínimo em projetar suas próprias opiniões sobre pessoas e coisas, odiando-as ou amando-as com a mesma facilidade. Como a análise e a reflexão são processos complicados e difíceis, eles preferem julgar tranquilamente, sem dar-se conta de que simplesmente estão projetando algo que trazem dentro de si e deste modo não percebem que são vítimas de uma estúpida ilusão. Não se apercebem da injustiça e da falta de amor que tal procedimento implica, e sobretudo não consideram a grave perda de personalidade que eles sofrem, quando, por mero desleixo, se permitem o luxo de transferir seus próprios erros ou méritos para outros. Sob qualquer aspecto, é extremamente inconveniente pensarmos que os outros são tão estúpidos e tão inferiores quanto nós próprios, e deveríamos tomar consciência do dano que causamos, transferindo espontaneamente nossas próprias boas qualidades para salteadores morais, sempre ávidos de novas presas" - Jung; uma vez que os complexos não são reconhecidos pelo ego, esses se projetam nos sonhos como pessoas e personagens, nas visões de forma espacial através de vozes e algumas aparições, nas psicoses onde tendem a ser atribuídos as manias de perseguição de pessoas reais, essa projeção pode conotar um mecanismo de defesa, uma forma involuntária e não percebida de lidar com tais conteúdos inconscientes que ao invés de fazer parte de um processo de integração reconhecendo o que lhe pertence, a pessoa passa a encarar (e acreditar) que tudo o que chega é oriundo do mundo externo.
Utilizando do exemplo de Saulo, o perseguidor de cristãos, no complexo de Cristo, esse pode representar um aspecto simbólico do próprio Nazareno como um conteúdo que precisava passar por um processo de integração, sendo a perseguição uma resistência ao suposto chamado (que por sua vez era reprimido internamente), quando há a integração Saulo se transforma em Paulo sendo o completo oposto da figura sombria anterior.
O preço da perda de autonomia psíquica está diretamente relacionada nas projeções, ilusões, e até mesmo da repetição do comportamento alheio. Um exemplo, uma pessoa que outrora era contrária a determinada ideologia política, passa a incorporá-la porque uma figura da qual se espelha acredita e segue a mesma filosofia, ou alguém que rejeitava o uso de fluídos corporais, mas a partir do momento que a figura idealizada utiliza a pessoa também passa a utilizar, ou ainda a adoção de mecanismos, aparência, trejeitos, gostos individuais e até mesmo a absorção e afirmação de doenças ou transtornos - isso inclui replicar as características dos portadores.
Aqui nos deparamos com dois tipos de pessoas, a primeira que é forçada pela própria neurose a enxergar o próprio interior, ver sua dor e empurrá-la para a consciência dentro de um processo psicoterapêutico; o segundo tipo que são aquelas pessoas que não tiveram um evento ou ação e assim não se depara a ser forçado a um trabalho interior e descarrega suas frustrações e conflitos em terceiras pessoas ou até mesmo no coletivo, como os casos de revoluções e ações da massa.
Apesar de ser um processo complicado, a neurose também pode ser um motor para individuação, uma vez que obriga o indivíduo a lidar com as questões reprimidas. No caso contrário a culpabilidade do outro pelas desgraças próprias se torna um caminho mais fácil de se livrar da culpa, porque é muito mais fácil psicologicamente delegar o mal do lado de fora do que reconhecê-lo em si, assim como culpar o diabo por estímulos do pecado praticado quando na verdade a escolha foi individual e consciente.
Os movimentos totalitários como a inquisição, nazismo, dentre outros, representam bem tais mecanismos.
"O neurótico, entretanto, é forçado por sua neurose a dar este passo em frente, o que não sucede com a pessoa normal, que, em compensação, vive suas perturbações psíquicas, no plano social e político, sob a forma de manifestações de uma psicose de massa, como as revoluções e guerras, por exemplo. A existência real de um inimigo sobre o qual se podem descarregar todas as nossas maldades, constitui um inegável alívio para a consciência. Pelo menos pode-se dizer, sem hesitação, quem é o demônio causador das perturbações. Pode-se ter plena certeza de que o causador do desastre se localiza no exterior e não, por exemplo, na própria atitude. Desde o momento em que temos uma noção clara das consequências um tanto desagradável da interpretação ao nível do sujeito, impõe-se ao nosso espírito a objeção de que é certamente impossível que todas as qualidades más, cuja presença nas outras pessoas nos irrita, pertençam também a nós. Se assim fosse, todos os grandes moralistas, todos os educadores fanáticos e todos os reformadores do mundo seriam os piores de todos. Muita coisa se poderia dizer a respeito da coexistência do Bem e do Mal e, de modo mais geral, a respeito das relações diretas entre os pares de opostos, mas isto levar-nos-ia para muito longe de nosso tema".
Sacerdócio não é propaganda e não é apenas um mero chamado, é dedicação, disciplina, sentar para ouvir e aprender, se tornar antes de forma, ter coerência entre discurso e prática, entre demonstração pública e ações íntimas.
Ao buscador, ao aprendiz, ao neófito, fica o desafio de não apenas distinguir mestres verdadeiros e falsos, mas reconhecer o caminho em si, os indícios da própria magia, observar internamente o que os contatos provocam na própria vida, se questionar se sua existência está ou não melhor. Nós nos tornamos parte daquele que aprendemos e nos desenvolvemos, porque em todo ensinamento espiritual e instrução emocional um pouco do mestre fica em nós, é comum, inclusive, que herdemos características e formas de falar e pensar.
Reforçando que o preço da dissociação é caríssimo, perder a autonomia, desvincular abruptamente da própria essência, repetir padrões te empurra de forma vulnerável ao fanatismo.
É preciso coragem para confrontar os aspectos sombrios de si, mas é preciso inteligência para perseguir caminhos reais na busca da integração e essa é uma responsabilidade individual.
Quem você quer ser ao longo da sua jornada?



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